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A FASCINANTE HISTÓRIA DE FRANZ CZEISLER, OU MELHOR TIHANY, O REI DO CIRCO(POR TIAGO GONÇALVES)

Tihany e Tiago Gonçalves, na ocasião da entrevista

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O artista Tihany fala sobre a sua paixão pelo picadeiro

Tenho apenas 40 minutos. Tempo nada satisfatório para entrevistar Tihany, um dos maiores empresários circenses do mundo. A razão não está atribuída ao mérito superlativo conquistado, mas ao seu namoro com a lona que ultrapassa oito décadas. Apesar de não descender de uma família circense, Tihany entrou para o picadeiro logo cedo, aos 12 anos. Foi batizado de Franz Czeisler, mas é melhor deixar tal nome num dos cartórios da Hungria, sua terra natal, onde foi registrado, porque ninguém o conhece mais assim. Chame-o apenas de Tihany. Basta.

Sob a lona da Unicirco na Lagoa do Taquaral, enquanto o espero chegar, traço na mente alguns assuntos a serem abordados: o começo no circo, a perseguição pelos nazistas, a passagem pelo Brasil. De repente, ele chega, ladeado por Richard, ilusionista de sua trupe, e Sônia, secretária de décadas. Espero encontrá-lo (coisa de menino) de fraque brilhante, cartola de mágico e pose de circense, mas Tihany me surpreende pelo andar vagaroso, fisionomia fechada (abrirá somente nos instantes das fotografias) e ao vestir uma jaqueta de avô.

Convido-o a sentar numa cadeira da arquibancada. Num instante, distraio-me e dou as costas ao picadeiro. Tihany como um sacerdote defende seu altar. Repreende-me: “É feio. Nunca fique de bunda para o picadeiro. É falta de respeito...” Peço desculpas. Nosso papo em ‘portunhol’ dura os exatos 40 minutos. Tihany fala oito idiomas, mas ainda cultiva o hábito de misturar o português com o espanhol. “Quantos anos o senhor tem?’, é minha primeira pergunta. Com a piada na ponta da língua, feito um palhaço, responde em tom de farra: “39...,ops, 93”.

A conversa não tem cerimônia, bem diferente dos títulos que ostenta: Embaixador Mundial do Circo, outorgado pela família real de Mônaco, Doutor Honoris Causa pela Universidad Mesoamericana de Puebla, no México, ou presidente do júri do Internacional Circus Festival of Budapest, na Hungria. Usando a casaca de empresário circense, deixa a informação principal de sua vinda ao País para o final da entrevista. Antecipo-a: em julho de 2010, o Tihany Spectacular inicia uma turnê pelo Brasil, começando por Manaus. A seguir, trechos de nosso bate-papo de picadeiro.

Agência Anhanguera — O Grande Tihany, como o senhor é conhecido até hoje, entrou pela porta do circo como tratador de animais. Recorda-se do primeiro instante em que pisou no picadeiro?

Tihany — Foi na cidade onde nasci, Kephaz, há mais de 80 anos. Quando tinha 11 para 12 anos, escapei da minha casa e de minha mãe, que era viúva, e fui para um circo. Nesse circo, passei a ajudar os funcionários, dando água para os animais, e em troca disso eles me davam as entradas para eu assistir aos espetáculos. Depois dessa experiência, passei a acompanhar todos artistas que vinham à cidade para apresentar seus espetáculos. Até que chegou um mágico. Assistindo ao espetáculo dele, resolvi ser mágico também.

No entanto, para concretizar o sonho de virar um grande ilusionista, o senhor necessitou cruzar o oceano ao lado de um tio. Conte essa experiência.

Imigrei com ele para o Uruguai. Em Montevidéu, no Carnaval de 1930, encontrei pela primeira vez um espetáculo que unia mágica, faquirismo e bichos: leões, tigres, crocodilos e jacarés. Era conduzido por um grande faquir calabrês chamado Blacaman, por sinal, um homem muito enérgico. Só que o espetáculo não acontecia dentro de um circo, mas no Teatro Artigas, que na época completava cem anos de fundação. Então, ofereci-me para trabalhar lá como ajudante.

Mas esse não foi o primeiro trabalho do pequeno Franz na América Latina. Não tem uma história envolvendo a Copa do Mundo?

Claro! Fui vender chocolates e caramelos nos campos de futebol. Dessa maneira, pude assistir aos jogos da primeira copa do mundo de futebol...

De volta à trupe do Blacaman, quais foram seus primeiros ofícios?

Arranjaram um serviço parecido com o que eu fiz quando pisei no circo pela primeira vez: dar água e comida aos leões ou limpar as jaulas. Era peão. Daquela função passei a ser assistente do mágico. Com ele fui aprendendo a deitar no prego, bailar sobre o vidro, comer fogo, engolir espadas e a colocar a cabeça na boca do crocodilo. Do Uruguai, a trupe excursionou para França e em Paris trabalhei pela última vez com Blacaman. De lá, voltei para Hungria.

O discípulo resolveu caminhar com as próprias pernas. Ou melhor, com os próprios truques?

A experiência com Blacaman me fez apaixonar pela mágica. De volta à minha casa, já com 18 anos, resolvi que viveria só de mágica. Na ocasião, minha mãe até fez a roupa e os aparatos de mágico para mim. Consegui reunir comigo um palhaço, uma malabarista, um acrobata e, juntos, passamos a percorrer a Hungria. Viajávamos de povoado em povoado oferecendo o nosso espetáculo. Na maioria deles, por serem lugares pequenos e muito pobres, não havia luz elétrica. Tínhamos que nos apresentar com o auxílio de lâmpadas de petróleo. Sofremos muito.

Ao lado do faquir calabrês, o senhor se apresentava como Sangaruja. Qual o motivo de trocá-lo por Tihany, nome de uma cidade húngara?

Passei por essa pequena cidade, às margens do Lago Balaton, simpatizei-me com o nome e resolvi adotá-lo. Deu sorte.

Mesmo em plena a Segunda Guerra Mundial, o mágico Tihany, descendente de família judia, não parou de excursionar pela Hungria, na ocasião aliada à Alemanha. Pode relembrar a mágica que usou para se livrar do massacre de Novi Sad?

Estava dando um espetáculo nessa cidade que ficava à beira do Rio Danúbio. Em busca dos partisans (guerrilheiros resistentes ao nazismo) aliados a Tito (Josip Broz), líder guerrilheiro que Hitler não conseguiu derrubar, os nazistas húngaros cercaram a cidade. Nesse lugar, chegaram a massacrar mais de 6 mil pessoas. Cerca de 300 pessoas, que eles pensaram ser partisans ou judeus, entre os quais eu estava incluso, foram levadas à margem do rio. Todos pensavam que os nazistas mandariam barcos para nos levar aos campos de concentração. Mas não foi isso que aconteceu. Perto da meia-noite, depois de uma ordem, os soldados começaram a metralhar todos. Naquele momento, atirei-me na água e nenhuma bala conseguiu me alcançar. Nadei... nadei até a outra margem. Era uma noite fria e quando sai da água a roupa imediatamente congelou no meu corpo. Escapei. Foi um milagre.

Na chula Hoje tem espetáculo?, prega-se que o palhaço é ladrão de mulher. No seu caso, foi o mágico o raptor do coração de uma menina. Casou-se com uma partner?

Sim. Em Ineo, fizemos espetáculos quinta e sexta. Gostaram muito. Então, o povo disse: “Senhor Tihany, porque não fica sábado e domingo?” Eu respondi: “Não tenho outro repertório para apresentar. Somente esse que fizemos até agora”. O povo insistiu tanto que eu sentenciei: “Só fico se me arrumarem uma ajudante!” Naquele momento, me apresentaram uma menina, de 16 anos, de nome Ilona. Ela cantava e passou a me ajudar nas pantomimas cômicas. Enamorei-me dela, ela de mim, nos casamos e rodamos o mundo.

A América Latina sempre foi divisor de águas em sua trajetória artística. Quando o senhor chegou ao Brasil, país onde nasceria o Circo Tihany?

Pisei em Santos no dia 6 de maio de 1953. Ao lado de Ilona e Ludwig, meu filho, na época com 14 anos, cheguei apenas com pequenos baús, que traziam roupas e meus apetrechos de mágica. Alugamos um quarto vazio na Rua Augusta. Não tinha cama, nem mesa, nem cadeiras, nem nada. Nem banheiro. Havia sim um banheiro comunitário. Peguei algumas cortinas que tinha na mala, as joguei no chão e passamos a dormir em cima delas. E saí em busca de trabalho...

Foi fácil encontrá-lo?

Fui direto ao Rio de Janeiro me encontrar com o Circo Garcia, no Palácio do Alumínio. Eles me contrataram como mágico e trabalhei quase um ano com os Garcia. Terminei com eles, aqui perto, em Americana. Em 1954, comprei um circo e estou com ele até hoje.

Feito um passe de mágica, pode retornar a Jacareí de meados da década de 50 para narrar o engatinhar do Circo Tihany?

Comprei um circo, na verdade uma barraca grande, de 20 metros por 30. Os circos de antigamente não eram como esses que a gente encontra agora. Até o Garcia, considerado o Rei do Circo, tinha uma estrutura mambembe. Antes do meu circo, aquela lona que comprei abrigava um teatro de marionetes. Eu mantive o palco e passei a apresentar as minhas mágicas. Eu era o espetáculo. Depois disso contratei um equilibrista, uma malabarista e inclui números de contorção. O circo começou pequeno, mas foi crescendo, crescendo...

Ao mesmo tempo em que o senhor se notabilizou como um grande ilusionista, também arriscou no terreno da premonição, chegando ao ponto de adivinhar o presidente do Brasil eleito em 1955. Brincadeiras à parte, como foi seu contato com Juscelino Kubitschek?

Dei um espetáculo, em tempos dos comícios à presidência, em Cachoeiro de Itapemirim, no Espírito Santo. Na época, eu tinha um caminhão grande, que passei a alugá-lo para servir de alto-falante durante os comícios. Juscelino Kubitschek ficou sabendo disso e que havia um circo na cidade. Na mesma hora, mandou seus assessores me chamarem. Quando cheguei em sua frente, disse: “Prazer, seu presidente!” Juscelino retrucou: “Não sou presidente”. Então, eu virei para ele: “Quando Tihany diz que será presidente, é porque o senhor será!” E foi...

Definitivamente, aquela praça ficou para a história do Circo Tihany. Além da premonição do presidente, o senhor puxou a orelha de um futuro rei. Como isso aconteceu?

Num momento do espetáculo, percebi que alguns meninos invadiram o circo passando por debaixo da lona. Como eram muitos, fui atrás e um deles tirei puxando a orelha. Décadas mais tarde, com meu circo em Mar Del Plata, fui assistir ao show de Roberto Carlos, que por coincidência estava por lá. Após o espetáculo, entrei em seu camarim. Foi quando ele me disse: “Você é Tihany?” Respondi: “Sou”. Daí, Roberto: “Eu tenho uma conta com você?” Pensei e disse: “Conta? Nunca nos encontramos”. Então, ele me revelou: “Aquele menino que o senhor tirou do circo pela orelha no Espírito Santo, sabe? Era eu”.

Para apimentar a nossa conversa, remeto-o a um assunto bastante polêmico em torno dos circos brasileiros: Tihany é contra ou a favor dos animais sob as lonas?

A favor, claro! Eu mesmo, em meu circo, cheguei a ter 100 animais, entre elefantes, zebras, leões, tigres... Para o espectador isso é bom. Por meio do meu circo, cidades distantes do Brasil tiveram a oportunidade de conhecer de perto animais que nunca imaginariam receber, como uma ave exótica ou um macaco. Só não sou a favor de maltratá-los. Animais devem ser cuidados da mesma forma que uma mãe cuida de seu filho. Devem ser alimentados com o que gostam e receber as vitaminas adequadamente. Damos carinho para receber deles em troca a mesma cumplicidade.

Voltar a Campinas depois de décadas, lhe traz recordações?

Sim. Em Campinas, foi uma das praças que interrompi, por pouco tempo, a vida do meu circo. Aqui resolvi desarmar a lona e ir para São Paulo, onde tinha uma chácara. Naquele lugar, depositei todas as minhas coisas. Foi quando vendi a lona a um homem que estava querendo começar em circo: Beto Carrero. O primeiro circo dele tinha sido meu.

Qual o principal motivo que estimulou o senhor a tomar aquela decisão?

O campo nos Estados Unidos era melhor para mim. Principalmente Las Vegas, considerada a metrópole dos grandes espetáculos. Fui para lá e gostei. Mas depois disso voltei ao Brasil inúmeras vezes. Mesmo viajando o mundo, sempre fiz questão de levar a bandeira verde-amarela do País em nosso mastro. O circo era brasileiro, tinha começado aqui. O Tihany vinha do Brasil.

Feito Mister M, o ilusionista que revela os truques das mágicas após as apresentações, o senhor pode confidenciar aos leitores os segredos do seu sucesso?

Não existe. Para chegar aonde cheguei, necessita-se de talento e força de vontade. Tem que ser dedicado. Precisa amar o circo...


Publicado in Correio Popular - Caderno C, p.08

Sugestão e material enviado por Andréia Rezende


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